Há 7 anos saíamos à rua. Estávamos em Outubro de 2017 e tínhamos acabado de viver um pesadelo que assolou o norte e o centro do país.
A força diabólica das chamas, num outono anormalmente quente e seco, dizimou pessoas, casas, empresas, animais e florestas, deixando para trás um cenário dantesco, triste, desolador.
No dia 19 de outubro de 2017, centenas de cidadãs e cidadãos, representantes do poder local, bombeiros, forças de segurança e proteção civil, juntavam-se no largo da Câmara Municipal de Seia, numa pacífica, mas muito simbólica, manifestação pelo ‘’futuro da nossa Serra da Estrela’’ (algo nunca visto, numa pequena e pacata cidade do interior).
Por essa altura lançavam-se também as sementes para a criação do atual Movimento Estrela Viva (MEV). Um movimento de intervenção cívica que assumiu, desde logo, um ‘’compromisso’’ com a comunidade: o de estar alerta e de agir em prol do território, protegendo-o e valorizando-o, e exercendo a sua cidadania ativa em consciência.
Desde esse momento que estamos mais atentos. Tornámo-nos mais exigentes, mas também mais disponíveis para colaborar ativamente com as autoridades e parceiros locais em soluções conjuntas para o nosso território.
Desde então, que o MEV, em colaboração direta com as autoridades e parceiros locais, tem realizado no terreno diversas ações de preservação dos ecossistemas, entre as quais, atividades de reflorestação com espécies autóctones, ações de controlo de plantas invasoras, de sustentação de solos, ou de recolha de sementes; ações de educação e sensibilização ambiental (ex.: plogging na zona da Torre, ou ações nas escolas); ou ainda ações de valorização da cultura e ofícios tradicionais, promovendo o desenvolvimento do meio rural e fazendo pontes com os vários atores da comunidade, de forma a potenciar sinergias, capacitar os cidadãos e ver nascer e crescer novos projetos colaborativos.
Sabemos que os acontecimentos de 2017 marcaram uma viragem na gestão do território rural. O governo português iniciava, por essa altura, um plano que previa uma reforma sistémica na política de prevenção de incêndios florestais, e que incluía medidas como: o bloqueio da área do eucalipto, a criação do programa ‘Aldeia Segura, Pessoas Seguras’, a promoção da limpeza dos terrenos entre as aldeias e os povoamentos florestais, a obrigação da limpeza dos terrenos privados, o cadastro florestal para identificar e responsabilizar proprietários, o uso de fogo controlado ou da pastorícia para reduzir o material combustível, a criação de faixas de proteção, o investimento no associativismo florestal e a criação de Zonas de Intervenção Florestal (ZIF) – figuras de gestão coletiva do território que asseguram uma gestão mais sustentável da floresta, com maior geração de rendimento e maior eficácia na intervenção dos agentes florestais.
Nos primeiros anos, várias medidas começaram a avançar e houve, de facto, uma mudança de orientação na gestão política e técnica dos fogos. Mas a memória da tragédia foi-se desvanecendo e o plano foi perdendo fôlego, deixando o essencial por cumprir!
Em 2022, a Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF), que coordenou toda esta reforma, lançava um alerta: ‘’sem um novo ímpeto, o país arrisca-se a assistir de novo à destruição de infraestruturas ou a danos nas comunidades urbanas”.
Ao cenário de dificuldade na implementação destas medidas, juntam-se ainda outros fatores: as vastas áreas de monocultura intensiva de eucalipto e pinheiro que crescem de forma não controlada e, muitas vezes, em terrenos abandonados e não cadastrados; a proliferação acelerada e incontrolada de espécies invasoras (principalmente após os incêndios); as condições climáticas extremas, que só tendem a agravar-se e, finalmente, o despovoamento dos territórios rurais, problema societal há muito identificado e que continua (eternamente!) por resolver, com graves (e irreversíveis?) consequências a este e outros níveis.
A pouca atratividade socioeconómica destes territórios do interior, que se traduz na incapacidade de fixar população e investimento, intensifica o impacto dos incêndios florestais: menos pessoas nas áreas rurais traduz-se numa maior degradação florestal, numa menor capacidade para gerir o risco e numa maior vulnerabilidade destas regiões. Por sua vez, isto reduz a sua atratividade para fixação de população, criando um ciclo vicioso negativo que, se nada for feito, resultará no abandono e desertificação de um território com um património histórico, cultural e natural irrepetível. Não queremos, não podemos deixar que tal aconteça!
E todavia, este ano, os grandes incêndios voltaram. Em apenas três dias, este mês de setembro de 2024 tornou-se o quarto pior ano da última década em área ardida.
Depois da semana crítica que vivemos, é tempo de exigir respostas. E não podemos, nem devemos, embarcar na tese dos bodes expiatórios ou em teorias da conspiração, e culpar os incendiários ou os ‘’interesses instalados’’. Sim, eles existem. Mas o problema é muito mais complexo e prende-se, fundamentalmente, com a incapacidade de o Estado executar no terreno as reformas que tão bem planeia, e também com a nossa falta de exigência e de participação cívica!
Por isso mesmo, é tempo de exigirmos:
● Que sejam implementados mecanismos (fiscais, económicos ou outros) a quem rearborize os seus terrenos com árvores autóctones, mais resistentes ao fogo, a quem cumpra a lei e limpe os seus terrenos, zelando pelo bem comum! Um terreno bem gerido tem menor probabilidade de ser afetado por um incêndio;
● Que se limite a plantação de eucalipto e pinheiro-bravo, promovendo a criação de zonas “mosaico” biodiversas;
● Que se valorizem os serviços do ecossistema, tais como a água, o carbono e a paisagem e se apoiem novas formas de aproveitamento da floresta (ex.: bioeconomia) – há mais na floresta do que apenas madeira!;
● Que se promova e apoie, técnica e financeiramente, a gestão coletiva de terrenos e se mobilizem proprietários, associações florestais, empresas e municípios para esta gestão;
● Que se acelere a implementação do programa “Aldeia Segura, Pessoas Seguras”, cujo objetivo está muito aquém do que seria desejado;
● Que se promova o recrutamento de mais sapadores florestais, valorizando esta profissão e tornando-a mais apelativa;
● Que se aposte na valorização dos cursos de engenharia florestal nas unidades de ensino superior, em particular no interior do país;
● E, finalmente, que se promova uma discriminação efetivamente positiva dos territórios do interior, territórios que muitos de nós escolheram para aqui viver, trabalhar, ver nascer e crescer os seus filhos, em tranquilidade e em segurança.
É necessário, de uma vez por todas, um compromisso político sério para que se revitalizem os territórios do interior. Melhorando acessibilidades, reforçando a escassa rede de transportes públicos e de serviços de proximidade (saúde, educação,..). Apostando na promoção (e investigação) dos produtos endógenos associados a atividades tradicionais (ex.: pastorícia, apicultura) e seus derivados, promovendo o turismo de natureza, e criando sólidas condições para a fixação e criação de empresas.
É tempo de agir e de tornar estes territórios mais atrativos para viver e investir!
Queremos uma floresta com futuro e um futuro para o nosso Interior!